LINGUAGENS E EXPRESSÕES

3 maio

A força audiovisual do interior: grupo de Tefé prova que é possível fazer filmes interessantes com baixo orçamento

 por Rafael Lopes

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A cultura digital permitiu novos arranjos para a produção audiovisual, com inúmeras redes de criação e consumo. Essa configuração está transformando a percepção, a prática de realização e a relação com os produtos fílmicos. Atualmente, em função das inúmeras possibilidades da internet e dos equipamentos digitais de captação e edição de imagens, a produção e disseminação de filmes alternativos aos modelos hegemônicos é muito mais fácil e abrangente, independente do lugar físico em que seus realizadores estejam inseridos espacialmente. Os sujeitos não são apenas consumidores são agentes, produtores e difusores de conteúdos, pois a comunicação é marcada pela conectividade, mobilidade e ubiquidade.

Em outra postagem, no Blog do MIMO, já mostramos um breve panorama do audiovisual no Amazonas e suas transformações a partir do contexto cibercultural. Hoje vamos nos aproximar ainda mais desta temática ao compartilharmos o exemplo da Associação Comunitária Fogo Consumidor Filmes, do município de Tefé. O grupo é uma prova de que com criatividade, boa vontade e espírito de equipe, é possível fazer filmes interessantes, com baixo orçamento no interior da Amazônia, e ainda ganhar o reconhecimento internacional por suas iniciativas.

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O Blog do MIMO entrevistou (via Facebook) o coordenador do grupo, Orange Cavalcante da Silva, 37 anos, natural de Tefé, que por meio de uma bolsa estudou cinema na Argentina e depois voltou à cidade para desenvolver seus projetos audiovisuais e ministrar oficinas de produção de filmes de baixo orçamento. Em pouco mais de seis anos de atuação a Associação já produziu 21 filmes, entre longas-metragens e curtas de ficção e documentário.

MIMO – Como surgiu a ideia de criar a Associação?

ORANGE – O Grupo Fogo Consumidor (hoje em dia Associação), iniciou-se no final do ano de 2010 e início de 2011 na cidade de Tefé, através de um projeto audiovisual chamado “Eles Não podem Gritar”, que fazia parte de um trabalho de tese (TCC de conclusão de curso na Argentina). Este trabalho gerou curiosidade entre os jovens e adolescentes da região e que de imediatamente de aproximarem e logo se integraram ao projeto, a partir desse momento dava início a Associação, mas foi somente no ano de 2012 que foi registrada como associação civil.

MIMO – Quais são os objetivos da Associação?

ORANGE – É uma associação sem fins lucrativos que vem utilizando o cinema como uma ferramenta de inclusão, de reconstrução de conhecimentos, tirando assim muitos jovens e adolescentes do seu estado de vulnerabilidade, aumentando sua autoestima, oferecendo a oportunidade de mostrarem que são capazes de criar, inventar, de serem artistas não importando o lugar onde vivam. Entretanto a finalidade não é formação de artistas mas de ampliar seus horizontes, desenvolvendo a capacidade observadora e criadora, a imaginação e o pensamento. Se trata de desenvolver a percepção para que possam ter uma visão crítica da realidade.

MIMO – Como a comunidade é convidada a participar das atividades?

ORANGE – A participação da comunidade consiste em duas fases, a primeira na própria produção em si, de forma direta e indireta, existe uma participação da comunidade tanto ligada ao espaço físico onde sucede as diversas produções e também como atores sociais dentro da própria produção. A segunda fase é durante as mostras realizadas nos diversos bairros da cidade de Tefé onde a população interage de forma participativa contribuindo ao fortalecimento da relação da sociedade urbana com a rural através dos trabalhos audiovisuais realizados.

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MIMO – De onde vem os recursos para a realização dos projetos? São apoiados por algum tipo de instituição (governamental, religiosa, ONGs, etc) e como funciona a parceria?

ORANGE – Infelizmente a associação não possui nenhum tipo de financiamento ou parceria, todos os recursos para a realização dos trabalhos realizados são de ajuda dos próprios integrantes. Toda a equipe se ajuda: alguém traz a farinha, outro o peixe, um integrante tem um motorzinho para o transporte e assim sucessivamente. Apesar de todo problema com a falta de apoio, gera o espirito do trabalho coletivo entre todos, a ajuda mútua.

MIMO – Como é o processo de capacitação técnica e do pensar cinematográfico? A formação e preparação de elencos?

ORANGE – Todos os processos de capacitação são através de oficinas, essas oficinas são realizadas dentro de escolas, geralmente as escolas cedem uma sala de aula para que se possa realizar essa oficina, vale ressaltar aqui, que em determinadas ocasiões temos recebido apoio de algumas escolas. Dentro dessas oficinas os participantes recebem uma base teórica/pratica sobre linguagem audiovisual e geralmente no final de cada curso, como conclusão, cada grupo realiza um trabalho prático. Em cada aula, se desenvolve obstáculos epistemológicos concretos que funcionam como disparadores de exercícios e reflexões sobre o audiovisual. Por outro lado também trabalhamos com revisão de conceitos teóricos em função da participação e comunicação com os participantes, evitando a exposição fechada de conceitos que resultem distantes da realidade de cada participante.

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MIMO – Como escolhem quem ficará com as funções mais técnicas e de produção e que vai atuar?

ORANGE – Um dos conteúdos realizados durante as oficinas está relacionado com a produção, sobre as diferentes funções da equipe técnica e durante essa classe geralmente os participantes se identificam com alguma e a partir de então, de forma democrática se divide as funções, geralmente a maioria quer fazer parte do elenco.

MIMO – Como escolhem as temáticas que serão abordadas nos filmes? Os roteiros são colaborativos? Ou alguém escreve?

ORANGE – Os roteiros surgem de forma coletiva e muitas vezes se aproveita muito das ideias que surgem durante as oficinas. Geralmente procuramos desenvolver um produto que consista em uma realização audiovisual que represente e identifique nossa cultura, a realidade de cada participante através de uma história que eles queiram contar, levando sempre em conta sua subjetividade e identidades.

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MIMO – Como produzem a cenografia, figurinos, direção de arte objetos de cena, iluminação e direção de fotografia, maquiagem, produção de trilha sonora, efeitos especiais?

ORANGE – Temos consciência do pouco recurso que possuímos para realizar um trabalho onde se exige maiores produções como no caso de figurinos e outros efeitos, assim que todas as nossas histórias são simples de ser realizadas e produzidas, geralmente entre os efeitos produzidos estão relacionados com sangue e hematomas, no qual produzimos o sangue muitas vezes com limão, açaí e urucu e quando temos um pouco mais de orçamento compramos mel ou glicerina e misturamos com colorante vermelho para bolo. Como a maioria das histórias são regionais, então não temos muito problemas com figurinos. Quanto ao equipamento técnico, trabalhamos somente com uma câmera e um microfone e muitas vezes gravamos o som com a própria câmera e para isso usamos diversas técnicas para que o sonido não possa sair contaminado por ruídos de ventos ou outros fatores ambientais, o mesmo sucede com a iluminação, sempre procuramos trabalhar com a luz natural, quase nunca realizamos cenas noturnas justamente para não haver problema com a iluminação.

 MIMO – Após a produção como ocorre a exibição e distribuição dos filmes?

ORANGE – A primeira exibição realizada é para a comunidade local, as segundas são enviadas para festivais e a terceira distribuição são realizados no nosso canal no Youtube “Associação Fogo Consumidor”.

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MIMO – Qual o público de vocês, quem vocês pretendem atingir?

ORANGE – A ideia é sempre alcançar um público massivo, mostrar que no Amazonas existem vozes, mostrar nossas vozes através do cinema. Nossos trabalhos já participaram em vários festivais internacionais na Argentina, Porto Rico, Venezuela, Chile e Espanha.

MIMO – Quantos filmes a Associação já produziu e quais são os mais importantes?

ORANGE – Possuímos um total de 21 trabalhos realizados e cada um tem sua importância porque foram realizados em períodos importante para associação, mas podemos destacar os documentários “O Agricultor do Amazonas” e “Caboclos Ribeirinhos” por possuírem um olhar sublime sobre a nossa região e por sua forma narrativa.

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MIMO – Já ganharam prêmios? Quais e onde?

ORANGE – O primeiro prêmio ganhamos no ano de 2010 com o curta metragem “Meneruá” no “1º Festival de Cinema de Paraíso do Tocantins”; o segundo foi no ano 2011 com o curta “Cara de Anjo” “6º Festival Internacional de Cine Independiente de La Plata-Festifreak” e o terceiro foi no ano 2016 no “II Festival de Cortometrajes para la Educación en la Diversidad” na categoria “Jóvenes Temática Libre”, na cidade de Buenos Aires”.

MIMO – Qual é o reconhecimento que o trabalho de vocês tem fora do Brasil?

ORANGE – Por incrível que pareça temos mais reconhecimento fora do Brasil do que dentro do nosso próprio estado, de todos os trabalhos realizados, todos participaram de festivais internacionais, somente no ano passado participamos de 15 festivais fora do Brasil e com grande recepção do público que recorre a esses festivais.

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MIMO – Tem espaço e mercado para a produção de cinema no interior, ou as atividades servem como um exercício para a formação humanística e cultural?

ORANGE – Esse trabalho está além das leis do mercado porque não se procura lucro, o objetivo principal é a formação e construção de conhecimento do ser humano. Geralmente temos um imaginário das histórias, mitos, relatos e até mesmo da realidade das pessoas que moram no interior, muitas vezes essa forma de pensamento é resultado dos meios massivos de comunicação, de estereótipos construídos por realizadores que vem de outros lugares, então isso gera esses tipos de preconceitos a respeito da vida das pessoas que moram no interior. Através do projeto “Cinema e Identidade”, essas pessoas tem a oportunidade de construir seus próprios relatos sem a interferência de um terceiro, os próprios moradores passam a ser produtores desses trabalhos, passam a ser os protagonistas de suas histórias, passam a ter vozes próprias e isso rompe esse preconceito por parte da sociedade com relação a população do interior.

 

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