LINGUAGENS E EXPRESSÕES

25 mar

Cinema amazonense:  às margens ou no centro de outro contexto audiovisual?

Por Rafael Lopes

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Aos poucos a produção audiovisual amazonense começa a evidenciar sua potencialidade, ao transcender as abordagens espetacularizadas sobre a Amazônia, trazendo novas formas e cores para o mosaico cinematográfico brasileiro contemporâneo. O ritmo de produção ainda não tem a regularidade ou o “reconhecimento” de outras cinematografias regionais (que quebram o padrão de Hollywood ou da Globo Filmes), como o cinema pernambucano ou o gaúcho. A questão econômica e as alternativas para viabilização do projetos também é complicada. Mas, os realizadores locais têm se articulado em busca de estratégias para estimular a produção de filmes de ficção, documentários, experimentais e de animação.

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Entre os indícios dessa efervescência estão o aumento das produções locais e dos festivas e mostras alternativas na região. Além disso, o Amazonas também foi o estado que mais aprovou projetos no último edital do Prodav, Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro, da Ancine, para a produção de filmes e séries para TVs públicas. Em 2016, a II Mostra do Cinema Amazonense confirmou a diversidade criativa que permeia os novos realizadores. O evento que tem por objetivo divulgar filmes regionais (no intuito de mobilizar os realizadores locais, estimular novas produções e formar plateia), exibiu 25 filmes de diferentes gêneros e formatos. Nos quatro dias da mostra, além da exibição de filmes, foram realizados debates, palestras e oficinas, proporcionando o intercâmbio entre artistas e comunidade, bem como a discussão de aspectos estéticos, de linguagem, e alternativas para a produção, distribuição e exibição da produção local.

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Para muitos pesquisadores da cena cultural a trajetória do cinema tradicional sempre acompanhou os interesses das elites e da expansão capitalista, impondo à sociedade um processo de dominação cultural, ideológica e estética, engendrado num lucrativo sistema de produção, distribuição e exibição. Entretanto, movimentos como o Neorrealismo, o Cinema Novo, o Dogma 95, entre outros, apresentaram inúmeras possibilidades criativas em oposição ao sistema cinematográfico dominante, seja na forma de produção, nas temáticas, na linguagem, na relação com o público e nas alternativas de circulação.

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Isto aponta que para compreendermos um fenômeno dessa natureza não podemos nos limitar à perspectiva de que o cinema é só alienação, manipulação e mercadoria. É também uma forma de expressão, reflexão, poesia visual, crítica político-social e outras possibilidades. A sociedade e a cultura se transformam ininterruptamente, por isso, o cinema não pode ser analisado por um ponto de vista determinista.

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Outro fato importante é que a partir da facilidade de acesso aos equipamentos digitais, da plasticidade da internet e de suas articulações no ciberespaço foi possível misturar formatos textuais, sonoros e visuais, derrubando fronteiras entre o escrito, o sonoro e o imagético; o amador e o profissional; as necessidades cotidianas e a fruição da obra de arte; o sistema mercadológico e o engajamento social; o real e o virtual. Tudo está interconectado na sociedade cibercultural, permitindo que praticamente qualquer pessoa se torne (potencialmente) um produtor, editor, apresentador e difusor das próprias criações, quebrando a hegemonia dos grandes grupos de comunicação, a exemplo da “geração Youtubers”.

Nesse sentido, o cinema produzido no Amazonas nos últimos anos tem começado a superar a ideia de amadorismo ou de um cinema periférico de bordas. Pois, busca sua identidade criativa tendo a consciência de limitações técnicas, financeiras e de infraestrutura, mas não pretende ser subjugado por diferenças que tendem a invisibilizar produções paralelas à lógica dominante da indústria cinematográfica mundial ou do eixo Rio-SP.

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Nota-se que os filmes contemporâneos gravados na zona urbana de Manaus e também no interior do Amazonas, com diversas abordagens, apontam para uma renovação sobre a representação audiovisual da região amazônica, frequentemente associada a histórias exóticas e a personagens estereotipadas. A nova safra de cineastas amazonenses expõe temáticas que tratam de violência sexual, lendas, conflitos adolescentes, sensações corporais entre o real e o imaginário, memórias de família, crimes passionais, a emoção do futebol, além de uma miscelânea de críticas sociais. São assuntos universais, mas que ganham singularidades a partir do ponto de vista e do lugar de fala de quem narra essas histórias, das visualidades que revelam ambientes característicos da urbanidade amazônica e seus interiores, da relação do homem com a natureza e das intervenções ecossistêmicas nas transformações dos espaços e dos processos socioculturais.

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Assim, ao recusar o estigma de estar à margem da arte ou na periferia sociocultural, sugerimos a ideia de que é uma filmografia que emerge no centro de um outro contexto audiovisual. Filmes como o longa de ficção Antes o tempo não acabava (Sérgio Andrade, 2016), que representou o Brasil na Mostra Panorama do Festival de Berlim, e o documentário Parente (Aldemar Matias, 2011), premiado no 8˚ Amazonas Film Festival, fogem aos estereótipos e clichês culturais, normalmente associados à representação da Amazônia. Revelam outros universos simbólicos, valorizam outros modos de ver a vida e a natureza, dando voz e autonomia a grupos que são praticamente ignorados pelo sistema dominante.

Outros realizadores locais também tem se destacado em festivais de curtas brasileiros, como Cristiane Garcia (Nas asas do condor, 2007), Zeudi Souza (Vivaldão: o colosso do Norte, 2011), Dheik Praia (Rota de Ilusão, 2012), Francis Madson (Jardim dos Percevejos, 2014), Moacy Freitas (Se não…, 2015), Luiz Carlos Marins (Loucussão, 2015), Keila Serruya (A rua na dança: o corpo urbano, 2015) e Rafael Ramos (Aquela estrada, 2016). Alguns desses projetos foram realizados em parceria com coletivos artísticos, a exemplo do Artrupe, Difusão e Picolé da Massa, que ao integrarem artistas de diferentes vertentes (música, literatura, artes plásticas, dança, teatro, cinema), tornam-se laboratórios para experimentações, colocado em prática projetos colaborativos. É importante ressaltar que realizadores como Zé Leão, Chicão Fill e Izis Negreiros também têm contribuído na produção e difusão de filmes amazonenses.

Resgatando o pensamento do jornalista Narciso Lobo, o cinema no Amazonas é caracterizado pela “tônica da descontinuidade”. Em alguns momentos históricos foi mais marcante, como no final do Ciclo da Borracha ou durante o Movimento Cineclubista de Manaus, na década de 1960. Essa inconstância também é percebida nos festivais de cinema promovidos desde 1969 na capital amazonense. A pesquisadora Graciene Siqueira, em sua dissertação de mestrado Cinema digital em Manaus, defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da UFAM, destaca que na última década o crescimento dos eventos de cinema na região pode ter servido como impulso e vitrine para a nova geração de realizadores, mas o diálogo com o público ainda é distante, pois nem mesmo a população local tem o hábito de assistir aos filmes produzidos na região. Também salienta que a falta de políticas públicas para o audiovisual, as deficiências na qualificação profissional e formação de plateia são entraves que prejudicam o desenvolvimento da produção cinematográfica no Amazonas.

Desde 2006, o NAVI (Núcleo de Antropologia Visual da UFAM), coordenado pela antropóloga Selda Vale da Costa (curadora da Mostra Amazônica do Filme Etnográfico), desenvolve pesquisas e promove debates acerca da representação audiovisual da Amazônia. Os pesquisadores do grupo já publicaram livros e artigos nos quais remontam um painel desde os primeiros registros cinematográficos na região, pelas companhias exibidoras estrangeiras, passando pelo trabalho de pioneiros, como Silvino Santos, até as narrativas contemporâneas. Integrantes do núcleo, como Gustavo Soranz, Fernanda Bizarria, Sávio Stoco, Antônio José Costa e Bruno Vilella, têm se debruçado em diferentes linhas investigativas sobre o cinema na Amazônia, explorando temáticas históricas, sociológicas, etnográficas, estéticas, com intuito de analisar questões artísticas, socioculturais, antropológicas e comunicacionais.

Portanto, o cinema contemporâneo amazonense simboliza a emergência de novas visualidades (como reivindicam muitas outras pelo mundo afora), sem que seja necessário justificar sua suposta “inferioridade” comparada ao mainstream ou aos circuitos do cinema de arte, pois se situa em meio a outra realidade histórica, social, cultural e ambiental. Portanto, tem outra lógica de percepção e produção. Não está às margens, mas no centro de outro contexto.

 

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