MIMO CIÊNCIA

10 abr

Comunicação & Arte

em perspectiva ecossistêmica e semiótica

por Rafael Lopes

No processo sociocultural as formas de comunicação e significação foram se estabelecendo nas relações ecossistêmicas entre os sujeitos e o meio, pelas possibilidades naturais e materiais do entorno, pelo desenvolvimento cognoscível e pela consciência reflexiva – que se transformaram no tempo e no espaço. Esse transcurso proporcionou a criação de linguagens para organizar o pensamento afetado pelos sentidos. Num lento e complexo processo, acompanhando o nosso trajeto antropológico, foram sendo aprimoradas a qualidade de gestos, sons, palavras, figuras simbólicas, a ativação de memórias, a interação com os semelhantes e com o ambiente.

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Desse modo, foram se organizando diferentes combinações de códigos em linguagens, entre elas a arte. E, na arte, inúmeras linguagens artísticas (pintura, escultura, música, literatura, arquitetura, teatro, dança etc.). Logo, as linguagens artísticas são meios de comunicação e representação articuladas na imbricação de sistemas e, consequentemente, desencadeiam novos processos de representação, ou processos sígnicos, que se processam no pensamento continuamente.

Conforme a semioticista Lucia Santaella, à luz de Charles Sanders Peirce, não há pensamento sem signos, que por sua vez dependem de uma interpretação para existirem, e isso ocorre pela qualidade do sentimento, ação e reação, e mediação. Assim sendo, o ser humano só concebe o mundo porque de alguma forma o representa e, consequentemente, só interpreta tal representação por meio de outra representação (um signo que não é a coisa em si). Um processo que pode ser gerado a partir de imagens mentais ou palpáveis, pelo gestual, por ações, sons, palavras, sentimentos etc.

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Essa concepção pode ser melhor compreendida pela relação triádica da semiótica peirceana, constituída na triangulação signo-objeto-interpretante, ou seja, o signo representa alguma coisa para alguém, criando em sua mente um signo equivalente. Nessa operação, gera-se um interpretante e aquilo que o signo representa é denominado seu objeto. Portanto, o processo representativo caracteriza-se pela inter-relação entre signo-objeto-interpretante, numa cadeia infinita de semiose (a ação do signo).

Para aproximar essa ideia do campo da Arte, podemos voltar aos tempos pregressos, por meio de um exercício arqueológico da história antropológica, sobretudo, pela análise e compreensão de fragmentos do passado que nos foram legados pela perpetuação de registros visuais. Arqueólogos e antropólogos que estudam os vestígios evidenciados nos artefatos e pinturas rupestres de milhares de anos atrás, em sítios arqueológicos espalhados pelo mundo, por meio de estudos científicos conseguem estabelecer possíveis significados e correlações, mas admitem que é praticamente improvável atribuir certezas para um contexto tão complexo. Supõe-se que os registos pré-históricos, feitos antes da invenção da escrita, com a representação discursiva-visual de cenas cotidianas (de caça, guerra, dança, sexualidade etc.) ou simbologias míticas (concepções sobre a vida e a morte, por exemplo), por meio de desenhos ou ilustrações figurativas, manchas ou traços, estavam relacionados à consciência mágica da realidade e finalidades ritualísticas.

Nesse sentido, tais registros (“origens das artes visuais”), além de configurarem-se por processos sensórios-cognitivos, em função da presença humana nos mais diversos ambientes e contextos para sua produção e percepção, constituem-se como um sistema de grande importância do ponto de vista histórico, social, cultural e artístico, estabelecendo um arco espaço-temporal-comunicativo, que conecta desde as pinturas rupestres realizadas por nossos ancestrais aos grafites e pichações da paisagem urbana contemporânea, pois a arte carrega memórias em metamorfose nas suas variadas manifestações.

O tempo e os símbolos que distanciam historicamente as diversas apropriações dos espaços e suportes, podem configurar diferentes significados conforme os momentos evolutivos da espécie humana, além da gama de diferenças culturais e interesses que se expandiram e modificaram-se ao longo dos séculos. Todavia, mantém uma ligação fundamental e universal que é a necessidade de expressão, seja para manifestar a interpretação da experiência vivida ou imaginada, para perpetuar conhecimentos e informações, pela fruição, transgressão ou quaisquer outras possibilidades que se convergem para a vontade/necessidade do homem se comunicar.

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Mediada entre percepções, emoções e ideias, a arte é um dos fenômenos humanos mais complexos no processo de produção de sentidos. É subjetiva e acompanha o nosso “trajeto antropológico”, seguindo a concepção de Gilbert Durand. Como está sempre em transformação não pode ser lida ou compreendida de forma linear. Entretanto, ao abordarmos aspectos dessa complexa atividade humana, tecida por fios da razão e da sensibilidade, da insensatez e da rebeldia, do poder e da alienação, do sacro e do profano, do visível e do invisível, precisamos compreender que as concepções sobre manifestações artísticas, representadas em inúmeras linguagens, ao logo da história da humanidade, foram sofrendo alterações e ressignificações.

No senso comum, expressões como pintura, arquitetura, escultura, paisagismo, moda, design, decoração, teatro, cinema, dança etc., podem ter apenas o objetivo de ser “agradável aos olhos”, proporcionando prazer ou fruição estética. Porém, a potencialidade da arte e da estética é bem mais complexa, na medida em que a estese afeta diferentes níveis perceptíveis e emocionais, extrapolando simplificações sobre o belo ou o feio. Portanto, há um amplo panorama a ser percorrido para compreender que a arte envolve aspectos da dimensão humana (bio-psíquico-espiritual), de contextos históricos e socioculturais, interesses políticos e econômicos, aperfeiçoamentos tecnológicos e mobiliza transformações paradigmáticas. No campo da semiótica, a arte é uma linguagem polissêmica, ou seja, de inúmeras linguagens e manifestações estéticas, que traz características tanto de percepções do mundo físico quanto de nossas elaborações mentais.

É uma ação sígnica mediada, não é mera reprodução ou equivalência do juízo perceptivo, mas uma espécie de tradução conceitual que adquire forma (seja figurativa, simbólica ou abstrata), conteúdo e subjetividades a partir do meio e dos suportes materiais nos quais é representada. A exemplo da gravura, do grafite, da fotografia, da ópera, da dança, do cinema e assim por diante, que apresentam peculiaridades em seus contextos de linguagens, suportes e aparatos técnicos.

No entendimento do filósofo João Paes Loureiro, a história da arte apresenta-se como um grande “mosaico de conversões semióticas”, promovidas por sucessivas transgressões aos padrões vigentes, considerando a metamorfose dos processos e das significações desde a Pré-História, passando pela Antiguidade Clássica, pela Idade Média até chegar aos dias atuais (considerando aqui apenas didaticamente tais divisões históricas, afinal é processo contínuo), pressupondo ciclos cada vez mais rápidos, diversificados e remixados.

Essa conformação assimétrica de mestiçagens, pode ser exemplificada quando no século XX as “Belas Artes” (compreendidas como o ramo erudito da arte) convertem-se em expressões consideradas “banais”, a exemplo do que fez Marcel Duchamp ao transformar objetos do cotidiano (como rodas de bicicleta e urinóis) em obra de arte. Ou o caso de Andy Warhol que deu a arte uma faceta publicitária. Ou nas inúmeras possibilidades das manifestações artísticas de alcance popular, como as performances de rua, a web-vídeo-arte ou o grafite, por exemplo. Assim, na contemporaneidade, marcada pela pluralidade de estilos e multiplicidade de linguagens e códigos, a arte faz parte do cotidiano. Pode ser conceitual ou reproduzida industrialmente, misturando tendências, tecnologias, quebrando hierarquias e até mesmo inserindo-se ao meio ambiente e transformando espaços públicos e privados.

Desse modo, compreender e interpretar a arte e seus fluxos comunicacionais implica em traduzir signos em outros signos, num movimento inter-relacional e ininterrupto do pensamento. Esse fluxo de signos em transformação carrega linguagens artísticas reconfiguradas e ressignificadas no tempo e no espaço. Portanto, a arte é uma forma de comunicação em constante transfiguração, mediada por processos de construções culturais. Percepções, ideias e expressões se organizam, desorganizam e reorganizam, conforme vamos vivendo e remodelando as significações da vida em busca de sentidos à existência.

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