Um olhar ecossistêmico comunicacional para a “ciênciarte”
Por Rafael Lopes
Ao nos aproximarmos da órbita dos Ecossistemas Comunicacionais, que não se configura como um conceito formal e fechado, podemos ter a impressão de estarmos perdidos no espaço. À deriva na imensidão do mar. Ou numa densa floresta em busca de uma trilha. Afinal, como é possível pensar e fazer ciência sem a coerência de uma teoria formulada e estruturada com métodos tradicionais, procedimentos práticos, aplicações, resultados que garantam o rigor dos estudos? Sem a credibilidade de um selo que lhe ateste cientificidade?
Responder a esses questionamentos não é fácil, mas talvez acione o início de um pensamento em cadeia, no intuito de investirmos no empreendimento de construções que talvez nunca sejam finalizadas e mesmo assim não perdermos o prazer de continuar a edificá-las com arte e criatividade. Erguer uma ponte que não leva a outra margem do rio, mas propõe a possibilidade do rio ter uma terceira margem, ou múltiplas pontes para múltiplas margens, ou ainda arquitetar uma casa sem teto, uma universidade sem chão. Mas, ao pensarmos desse modo, será que as pontes serão seguras, as casas habitáveis e as universidades produzirão conhecimento?
Essas alegorias servem de metáfora para nos sugerir que não há garantias nem segurança. O viés dos Ecossistemas Comunicacionais não pretende se restringir a uma teoria ou a um método fechado, em busca de respostas definitivas. Assim, ao denominá-lo, nos referimos como sendo uma “ideia” ou uma “perspectiva do olhar”, para a qual, por enquanto, temos apenas pistas, reflexos muitas vezes desconexos. E, possivelmente, sua peculiaridade esteja em se manter desta forma, pois no momento em que tivermos o seu mapa detalhado, poderemos constatar que o baú do tesouro é apenas uma arca vazia e, na frustração, esquecermos que a trajetória foi o mais importante e significativo no processo de descoberta. Desse modo, enquanto um pressuposto que transita articulando diferentes sistemas e saberes, por isso, complexo de se compreender, pode promover experimentações com nuanças impensadas para revestir as polissêmicas superfícies da construção do(s) conhecimento(s).
A perspectiva dos Ecossistemas Comunicacionais, no entanto, já é uma proposição institucionalizada, haja vista que é a Área de Concentração do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade Federal do Amazonas (PPGCCOM/UFAM). Iniciado em 2008, foi o primeiro Programa de Pós-Graduação na área de Comunicação do Norte do Brasil a ser aprovado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Atualmente, suas investigações são guiadas por duas linhas de pesquisa: Redes e processos comunicacionais; e Linguagens, representações e estéticas comunicacionais.
É uma concepção que dialoga com múltiplas conceituações teóricas e campos do conhecimento, propondo articulações sistêmicas, complexas e de imersão sensorial, rompendo a linearidade pragmática das teorias clássicas da comunicação, que analisam o fenômeno comunicativo basicamente num processo emissor-mensagem-meio-receptor e consideram que a comunicação só ocorre quando o receptor compreende o código da mensagem enviada. Numa compreensão ecossistêmica as inter-relações são fundamentais para estabelecer possibilidades de leitura para uma teia comunicativa repleta de nós de interconexões e interdependências.
Se fizéssemos a relação de uma concepção clássica da comunicação com a arte, poderíamos associar o emissor ao artista, o receptor ao observador/fruidor/espectador/ouvinte/leitor etc., e a mensagem à obra de arte, na linguagem em que se manifesta. Nesse sentido tradicional, o entendimento artístico (a comunicação) só existiria se emissor e o receptor partilhassem dos códigos, através dos quais a mensagem fora apresentada, ou seja, só existiria comunicação se o emissor e o receptor compreendessem a linguagem da obra de arte. Entretanto, em nossa concepção, essa possibilidade é limitadora, porque exclui inúmeras outras possibilidades subjetivas e formas de percepção, interpretação e compreensão.
Diante disso, quando propomos uma análise dos fenômenos comunicativos por um viés complexo, percebemos que a comunicação vai muito além da relação funcionalista entre emissor-mensagem-receptor, afinal, estamos tratando de um contexto compreendido por inter-relações e interdependências. Ou seja, além da transmissão e recepção da informação há um intrincado processo de significações e compartilhamento de sentidos, com dinâmicas e ressonâncias que variam conforme as sistemáticas envolvidas.
Para Fritjof Capra o maior desafio é mudar a maneira de pensar a ciência, descortinando uma nova visão da realidade. Segundo o autor, é necessário ultrapassar as noções mecanicistas e reducionistas, que ainda guiam muitas teorias ancoradas no pensamento cartesiano-newtoniano. Capra defende o pensamento ecológico, não concebe os elementos de forma isolada nem os segmenta ou os padroniza. Para compreendê-los é preciso fazer relações por interdependências contextuais, nos mais variados níveis de complexidade e incertezas. É uma perspectiva intrinsicamente dinâmica, capaz de aliar o conhecimento racional com a intuição da natureza não linear do ambiente, entrelaçando seus elementos, em movimentos cíclicos, flutuantes, ondulatórios, vibrantes e oscilatórios.
Para o filósofo Edgar Morin a arte pode ser aliada da ciência. De acordo com o pensador francês, um dos desafios do pensamento complexo é a necessidade de “desinsularizar” o conceito de ciência, pois, a ciência é como uma península em um continente sociocultural onde há muitas outras penínsulas. Morin acredita que há uma dimensão artística na atividade científica e, por isso, é inconcebível que não se estabeleça uma comunicação mútua.
Mesmo diante desta contextualização, possivelmente ainda pairem dúvidas sobre as ferramentas conceituais para auxiliar na compreensão dos Ecossistemas Comunicacionais, ou sobre como essa proposta se articula com outras áreas do conhecimento, ou como evidenciá-la em estudos teóricos e empíricos. Entretanto, como já foi ressaltado, a ideia desse campo emergente da comunicação não é aplicar uma fórmula para encontrar resultados de problemas, mas apontar pistas, trilhas e caminhos.
O que precisa estar claro é que mesmo numa aparente desordem (ou considerando a desordem como regra), existe uma sistematização com critérios científicos. Seu rigor está no vigor de aceitar que mesmo em um sistema aberto ou cambiável há critérios relevantes e recorrentes, que inter-relacionam diferentes elementos e configuram sistemas. Assim sendo, o desenvolvimento da perspectiva ecossistêmica na UFAM, parte de investigações que consideram a complexidade sistêmica e informacional dos fenômenos comunicativos, ao propor estudos sobre os processos de organização, transformação e produção das mensagens conformadas na cultura a partir das interações entre sistemas sócio-culturais-tecnológicos-ambientais. É um campo de estudos que encontrou no contexto amazônico um espaço fértil para a exploração das interferências mútuas entre as diferentes esferas que regem a vida, a comunicação e a cultura.
É uma perspectiva em constante construção e tem ganhado múltiplas propostas investigativas, a partir de diferentes fluxos de compreensão e experiências de pesquisadores dedicados a essa proposta aberta no campo da comunicação, a exemplo dos trabalhos desenvolvidos por pesquisadores como Gilson Vieira Monteiro, fundador do PPGCCOM e de Mirna Feitoza Pereira, com estudos guiados pelo viés da semiótica.
Conceitos e quadros teóricos, a exemplo da Teoria Geral dos Sistemas (Ludwig von Bertalanffy), do Pensamento Complexo (Edgar Morin), Ecologia Profunda (Fritjof Capra), Ecossistema Comunicativo (Martín Barbero), Novo Sensório (Walter Benjamin), Semiosfera (Yuri Lotman), Rizoma (Gilles Deleuze e Felix Guattari), entre outros, tangenciam, inspiram ou incorporam-se ao viés ecossistêmico proposto pelo PPGCCOM que, ao reforçar a suplementação do ambiente amazônico em sua proposta conceitual, apresenta-se como uma abordagem diferenciada das demais.
Para o pesquisador Sandro Colferai, a Amazônia é a própria metáfora de ecossistema comunicacional, já que faz uma leitura do conceito a partir da região. O autor propõe uma aproximação que se articula considerando a corporeidade das relações, as tecnologias, as subjetividades sociais, culturais e o ambiente. Para desenvolver sua tese de doutorado Um jeito amazônida de ser mundo, defendida em 2014 no Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA), recorreu a conceitos formulados pelos biólogos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana, como: enação, ao considerar a inseparabilidade entre ser humano e natureza; e autopoiese, ou seja, a capacidade dos sistemas vivos e suas estruturas estarem em constante autoprodução e autorregulação, mantendo interações entre seus próprios elementos e na relação com outros sistemas. Também embasou-se no Pensamento Complexo, de Edgar Morin, e na Ecologia dos Saberes, do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, em favor de uma ciência não paradigmática.
Desse modo, Colferai defende que a comunicação se estabelece por subjetividades e materialidades efetivadas entre vivências, contradições e compreensões transitórias, pelas quais o ser humano apreende ao atuar com o meio onde se insere, muitas vezes através de acoplamentos tecnológicos ou de interfaces sensoriais, que também constituem o processo de formação cultural e da codificação de linguagens. À luz de Marshall McLuhan (com a ideia dos meios de comunicação como extensões do homem), Colferai enfatiza que há uma plasticidade favorável à conexão entre ser humano, ambiente e os aparatos tecnológicos. Desse modo, o que vemos, ouvimos e sentimos (seja na experiência real ou virtual, individual ou na interação social, pelas telas de TV, celulares, ipods, jogos eletrônicos etc.) provocam reações no sistema nervoso criando novas conexões neuromusculares e cognitivas, fazendo com que os aspectos biológicos, psíquicos, sociais, do ambiente e o aparato tecnológico tornem-se pontos de conexão em simbiose. É nessa dinâmica que se proporciona a expansão de corpos e sentidos, por atuações diversas e complexas.
A compreensão sobre Ecossistemas Comunicacionais implica ter essa flexibilidade sensorial de percepções, por isso, quem se propõe a pesquisar por esse viés não deve pensar, necessariamente, em uma aplicação prática, mas exercitar a busca de multiplicidades cognitivas, permitindo que a criatividade e os afetos ganhem espaço na produção do conhecimento científico, promovendo uma ciência com arte ou “ciênciarte”.